“O Mundo está perigoso”: pela democracia liberal

1 Tenho recordado nestes últimos dias uma frase recorrente do meu saudoso colega (no ICS-UL) e amigo Vasco Pulido Valente: “O Mundo está perigoso”. Creio que, nessa altura, divergimos sobre o tema (cito de memória). Eu defendia as transições à democracia na Europa Central e de Leste, iniciadas pelo Solidarnosc de Lech Walesa na Polónia dos anos 1980 e depois com a queda do Muro de Berlim em 1989. Vasco receava, também com boas razões, que essas transições pudessem desestabilizar o equilíbrio entre o Ocidente liberal e a Rússia comunista, podendo vir a gerar grande instabilidade mundial.
Receio ter de subscrever hoje a tese de Vasco Pulido Valente: “o Mundo está perigoso”. Os motivos poderão ser de certa forma simétricos aos que (eu creio que) ele referia. Nos dias que correm, a democracia liberal e o Ocidente estão sob enfática ameaça.
2 Estas recordações foram-me reavivadas pela leitura da crónica semanal do (também meu amigo) Charles Moore na Spectator – a revista semanal britânica (conservadora-liberal) que Vasco Pulido Valente de certa forma divulgou entre nós. Na edição de 26 de Abril (a edição da Spectator em papel está a chegar a Portugal com 15 dias de atraso!), Charles refere uma curta visita de férias a Praga na semana anterior à publicação da crónica (The Spectator’s Notes, p.9).
Escreve ele que aproveitou essa visita a Praga para reler o livro de (nosso comum amigo) Timothy Garton Ash, We the People: The Revolution of ’89 Witnessed in Warsaw, Budapest, Berlin & Prague. Publicado em 1990, o livro basicamente reunia os textos enviados daquelas cidades por Timothy Garton Ash para a Spectator de Londres, então sob a direção de Charles Moore (que é hoje o Chairman da revista).
Recordando muito elogiosamente o livro, Charles Moore refere também que “hoje é fascinante observar que há duas coisas raramente mencionadas na obra”. Uma delas é o “medo da Rússia, que é referido, mas rapidamente superado graças à determinação de Mikhail Gorbachev de não intervenção”. A outra é “o apoio dos EUA às revoluções – um sine qua non tão completamente assumido que, por isso, Tim pouco refere. O seu silêncio é mais eloquente do que palavras.”
A concluir, escreve Charles Moore:
“Lido mais de 35 anos depois, o livro mostra um mundo que nós perdemos. Agora a Rússia faz a guerra e a América parece não se importar com a liberdade da Europa, o que sugere que não se importa com a liberdade em lado algum.”
3 Acontece que Timothy Garton Ash acaba de publicar uma vigorosa crónica no Financial Times de Londres (FTWeekend 10/11 de Maio, p. 9) sobre precisamente o mesmo tema que Charles Moore abordara 15 dias antes na Spectator, citando Tim. “Preparemo-nos para a desordem, à medida que as grandes mudanças de poder global começam” é o enfático título da crónica.
Retomando o tema de Charles Moore, Tim escreve que “Quando assinalamos o 80º aniversário do fim da segunda guerra mundial na Europa, cada dia traz mais evidência de que a ordem internacional liderada pelos EUA, que teve notável longa vida, acabou. (…) O Presidente Donald Trump está a destruir o que ainda resta desse edifício com velocidade e imprudência sem paralelo.”
Tim acrescenta que ninguém sabe ao certo o que vai suceder a esta “ordem internacional liberal (ainda que nunca inteiramente realizável)”. Mas considera que “a mais plausível resposta é um prolongado e perigoso período de desordem global”.
4 Em suma, como diria Vasco Pulido Valente, “O mundo está perigoso”. Não gostaria, porém, de terminar sem citar as breves palavras de esperança que Timothy Garton Ash nos deixa no seu muito preocupado e preocupante texto:
“Há sinais encorajadores de uma resposta liberal no Canadá, na Austrália e na Europa. O Papa Leão XIV promete ‘construir pontes’ numa terra em perturbação.”
observador